Para embalar Ana C.

E a voz meio aguda, não demais, gemida, com guitarras ao fundo – serão os Smiths? 

Mais ou menos sete anos atrás, me apaixonei por um disco. Ou melhor: pela última música do último disco de estúdio dos Smiths: “I Won’t Share You”, letra do Morrissey para uma melodia de Johnny Marr, em Strangeways, Here We Come

 
Uma letra muito simples: com o som do violão, um homem acorda de repente, na determinação, depois de ter visto ser lido um bilhete de amor (?). Ela não consegue voltar à razão. Sozinho no pânico cada vez menos lento começando a desabar, sobre sua paixão (toda paixão é egoísta), repete muitas vezes palavras como: Sonhos, Liberdade, Esperteza, Vida: oh sim, sim e aquelas histórias que continuam sendo devoradas. Sem ela não vivo, você inteira para mim. Ou vivo assim, a seco, sempre esta coisa atravessada na garganta.


This is my time
Life tends to come and go
That’s OK as long as you know
Life tends to come and go
As long as you know


Sete anos depois, agora, me apaixonei por um livro. Fazia tempo que não acontecia. Noutras vezes, já me apaixonei por um dos livros de Drummond, me apaixonei por Clarice, pela Tristessa, de Jack Kerouac, The Bell Jar, de Sylvia Plath, por Adélia Prado, pelo Oceano no Fim do Caminho, de Gaiman, Estar sendo, ter sido, de Hilda Hilst, ou Livro sobre nada, de Manoel de Barros. São livros (mas podem ser músicas, filmes, desenhos, e, até raramente, até pessoa) que você ama tanto que quer ficar mofando dentro deles, delas. Quer estar junto toda hora. Aglutina o jeito do outro, e esse jeito aglutinado da coisa pela qual tu estás enfeitiçado, você fica empregando no dia-a-dia, feito você fosse aquela própria coisa apaixonante. Que nos tira de nós, alarga.

Estou extraviado de paixão por Poética, de Ana Cristina César, uma antologia de suas obras que a linda da Companhia das Letras editou. Toda prosa, todo poesia. Leio em algum lugar que Ana C., morta em 83, era marginal, drogada, e, além do mais, tinha caso com mulheres. O que mais justifica e incendeia minha paixão: alegremente, ela não era “normal”. Não era mediana, não tinha acanho. Esse não acanho de Cristina transparece no que escreve: tudo tem uma grande ousadia, vivíssima pelo humano. Seja esse humano cara-pálida, fakes, pessoa do povo, ou apenas cenograficamente suburbano, como muitas de suas personagens, adicionando nós (eu, pelo menos, sou tão suburbano neste cosmopolitismo brega). Você lê e ama. Você lê e sorri. Você lê e engasga. Você lê e tem tremores. Você lê, e sua vida vai-se misturando no que está sendo lido: Para onde vão os poemas, dentro da gente, depois que você sai dos livros? Ficam misturados na vida, na emoção, na memória.

 
_________________________p. 74-75_________________________


Ler Ana dessa maneira, tão tomado de paixão, durante duas semanas que abrangeram umas viradas sepulcrais, viradas de festas (natal e ano novo de mãos dadas), umas viradas de medo, tão pesadas, carregou também vigor assim: não, Bruno L., você vai agarrar, porque essa tal de Ana C. aí não só agarrou como criou sobre. E let’s go. Então, lendo dentro do carro A teus pés, um dos livros de poemas do livro, ao chegar ao fim descobri – advinhem – nada menos que aquele fogo do final, “escrevendo no automóvel / pedra sobre pedra: [e então] você espera chegar. Pois a poesia me diz qualquer de “não adiantam nem mesmo os bilhetes profanos” qualquer coisa de paixão grata, qualquer coisa de não ter pressa. Vai saber o que a poesia consegue representar para cada um de nós, não é? Então me sento na banco e exclamo bem alto, para mim mesmo: - Sonhos, Liberdade, Esperteza, Vida!: 


I want the freedom and I want the guile
I want the freedom and the guile
Oh, Life tends to come and go… 


E a canção estava lá, mais que mera coincidência, nos versos aos quais recorro quando o coração está esturricado da sede insaciável que ela (a música, a Ana, a poesia) sacia.

Isso tudo só me diz que minhas paixões são semelhantes. Gosto de tudo que sangra e que afunda a cara na lama da vida crua e consegue arrancar o belo desse mergulho. Meio receoso, machucado, pesado por dentro e árido por fora, chego em casa na terça à noite para assistir ao Vidas Amargas, no Computador. E o som absurdamente cool desses irmãos de repente é precisamente o som que eu selecionaria para balançar os poemas de Ana C. - Brasil, marginal, América, a beira, pela pista a toda: tudo conchavando, então, porque tudo é con(m)chave, não deve haver assombro, enfia a carapuça e cante! Depois vem a chuva e durmo. Enquanto durmo toca My Funny Valentine, e eu penso que continua chovendo.


Acordo no meio da madrugada, espantado por sonhos com amores, e fico repetindo no escuro palavras como: Sonhos, Liberdade, Esperteza, Vida, Bondade, Paciência. O dia começa a lampejar, quando sento aqui e começo a escrever todas estas coisas que também lampejam.Em seguida abro uma Adélia Prado e vejo:


“A vida é muito bonita,
basta um beijo
e a delicada engrenagem movimenta-se,
uma necessidade cósmica nos protege.”


Logo após volto a dormir, crente de que ainda há muitas histórias e poesias para serem lidas, para serem lembradas, para serem escritas. Até para serem vividas, quem sabe?

____________O livro "Poética" de Ana Cristina César____________

Itapema, 02/01/14

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